Prof. Dr. Bernardo Grossi
Este texto foi publicado originalmente em Privacidade.org.br no 17 de março de 2025.
Fonte: https://privacidade.org.br/editorial-da-semana-transformacoes-e-paradoxos-da-privacidade-6/
A privacidade algorítmica e o desmonte silencioso da autonomia privada
O que significa, hoje, exercer a autonomia privada em um ambiente informacional saturado de opacidades e manipulações preditivas? A pergunta parece retórica, mas é urgente. Em um mundo em que algoritmos decidem o que vemos, consumimos, lemos e até com quem interagimos, a ideia clássica de liberdade contratual — fundada na autodeterminação individual (privada) — começa a se desmanchar no ar, como advertia Zygmunt Bauman sobre tantas outras estruturas modernas.
A promessa inicial da Era Digital era de empoderamento. Esperávamos plataformas abertas, pluralidade de vozes, ampliação do acesso. Mas o que se assiste, paulatinamente, é o avanço de uma estrutura concentrada de coleta e processamento de dados, em que os indivíduos são duplamente vulneráveis: enquanto consumidores e enquanto fontes permanentes de informações monetizáveis. Nesse cenário, o titular de dados deixa de ser um sujeito de direitos para converter-se em objeto de inferência. Perdemos o controle sobre nossas informações, sobre nossas escolhas e, enfim, sobre nossa própria narrativa.
Esse fenômeno tem nome e técnica: chama-se vigilância preditiva. Shoshana Zuboff, em sua obra seminal A Era do Capitalismo de Vigilância, descreve com precisão esse sistema que não apenas observa comportamentos, mas os antecipa e os orienta. O dado pessoal, então, deixa de ser mero insumo e passa a ser arquitetura. Ele molda o campo das escolhas disponíveis e, por extensão, interfere decisivamente na esfera de liberdade pessoal.
Na tradição do direito privado ancorado na dignidade da pessoa humana, como defendem Rodotà, Perlingieri e Gustavo Tepedino, a autonomia não pode ser compreendida como um consentimento formal ou um clique apressado em um botão de “aceito”. É preciso restaurar o conteúdo material da autonomia privada: a capacidade efetiva de compreender, avaliar, escolher, resistir e delimitar objetivamente as escolhas que são feitas sobre si. Consentimento informado exige, minimamente, assimetria reduzida, linguagem acessível, possibilidade concreta de recusa. O que temos hoje, nas plataformas digitais, é justamente o oposto: estruturas contratuais que impõem, em massa, adesões opacas e irrevogáveis, disfarçadas de opção livre.
Diante disso, urge reconhecer que a proteção de dados pessoais não é mero capítulo técnico da conformidade regulatória, mas componente estrutural da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Trata-se de reafirmar a privacidade como o último reduto da liberdade individual nas relações privadas saturadas por assimetrias informacionais. Negá-la ou esvaziá-la, como têm feito alguns setores sob o argumento da dinamização econômica, é comprometer a essência do próprio direito.
Mais do que isso: é imprescindível compreender a privacidade como espaço de “não-direito”, nos termos de Karl Larenz e mais precisamente Rodotà, onde a pessoa possa se retirar do olhar da máquina, silenciar suas pegadas digitais, deliberar sem vigilância. Sim, precisamos de uma privacidade contra o algoritmo, contra a microgestão da vida por entes privados com poder quase soberano sobre o fluxo de informações.
Não se trata de romantismo jurídico, tampouco de nostalgia de uma autonomia que nunca foi plenamente realizada. Trata-se, antes, de compreender que a proteção de dados pessoais, quando autêntica, é a linguagem contemporânea da dignidade. Enquanto não reconstruirmos uma concepção robusta de privacidade e autodeterminação informativa, todo o edifício do direito privado moderno se tornará um simulacro.
O desafio está posto: seguiremos chamando de “liberdade” aquilo que já não é escolha?